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A terceira imagem
As coisas têm suas verdades. E vontades. Parece assim. Aqui elas já tinham até nome. Um outro[1]. Mas foram teimando, teimando e, ao fim, afirmaram o desenho que queriam. Tal qual um personagem cismador, nunca dado à loucura, que manda fazer um barco em que só cabe a si e se lança pra dentro do rio perto de casa. Larga mulher, filho, filha: tudo. Vai e não vai – e não volta. Permanece pelas cercanias, aqui e ali, morando no rio, entre uma margem e outra, sem jamais pisar novamente em chão ou capim. A filha casa, tem filho e vai embora. A mulher envelhece e se vai pra perto da filha. Só fica o filho. Perto e distante do pai. Sem paz. Tampouco o pai. O filho a perguntar se o pai os amava. Se os amava, por que o abandono? Se não, por que não os deixava?
Começo pela aparência. É por onde se começa. Rosa, azul, amarelo e verde. Podem ser outras cores. E são. Na maior parte das vezes a composição desfila alguma extravagância. As cores se aprumam em faixas sem perseguir perfeição: brotam das tintas borrões e detritos. E tem o dégradé. Em algumas telas as faixas se inclinam, como se tivessem perdido seu ponto de equilíbrio. Também avançam, não respeitando o caráter físico das bordas do quadro. Seguem para além desses limites, estruturadas somente na complexão da tinta, que é precária, para finalizar franjas: áreas algo esfarrapadas.
As coisas vêm de algum lugar. De onde vem essa aparência? Embora tanta história passada, a disposição não se aninha tranquilamente no interior dos contornos da arte. Há o desconforto do que ainda se ajeita. De quem acabou de aportar. Não são cores inteiramente abstratas, se fossem o problema não se daria, já que essas são incontestes moradoras. A apresentação dessas telas acusa algo estrangeiro, sinais que referem a outra estirpe, ainda que de forma embaçada. Desconstruídos, recolhidos isoladamente, os aspectos reportam com mais nitidez sua natureza. Delatam uma condição tomada como enjeitada, proveniente de experiências travadas em territórios alheios à arte. É lá que se espelham as combinações de cores, o acabamento negligente, a desfaçatez, o humor e a mordacidade.
No jogo da arte, e a arte é um jogo, o decisivo, afirma o filósofo Hans-Georg Gadamer, "não é a realização de algo feito, mas o fato de aquilo que é feito possuir uma peculiaridade particular[2]". O território que abriga a arte tem demarcações precisas, capazes de possibilitar a distinção de suas realidades de outras relativas a outros âmbitos. Todavia, os eventos artísticos, no momento de sua realização, afrouxam e distendem essas demarcações na forja de novos acontecimentos – tais eventos são considerados arte justamente por promoverem essas distensões. Em seus lances mais ousados essa forja reclama com vigor a intervenção de experiências pertinentes a outros mundos, de ordens que ocupam territórios distintos; experiências que são processadas e, ao fim e ao cabo, resultam em novas áreas de pertencimentos. Incorporadas, as travas são esquecidas, o esforço de colocá-las ali – algo que se dissipa e com o tempo – só se percebe pela satisfação e merecimento. E se as realizações exigem esforço para remontar os elementos da tradição que dela participam, que se dirá daqueles elementos oriundos do estrangeiro. Ainda assim, não seria o caso de um empenho analítico atentar a essa existência? Não diminui em nada a envergadura da obra de Henri Matisse reconhecer que muitas das inovações formais ali promovidas foram disponibilizadas por seus conhecimentos de padronagem têxtil. Matisse era criança quando sua família mudou-se para a pequena Bohain-en-Vermandois, uma comuna francesa na região da Picardia – onde viveu até os 21 anos – que ficou conhecida pelos tecidos luxuosos e de alta qualidade que produzia. Os ancestrais de Matisse foram tecelões por várias gerações e sua mãe era uma especialista em seleção e preparação de cores, além de administrar um pequeno comércio que atendia as pequenas indústrias locais. De mais a mais Matisse sempre reconheceu isso, trazendo essa presença inúmera vezes em suas telas e mantendo uma grande coleção de tecidos, à qual se referia como "biblioteca de trabalho".
Nas telas de Fernando Burjato a experiência forasteira aparentemente pertence a um ambiente bastante próximo e, ainda assim, muito distante do território da arte. Um âmbito que abriga os seus excluídos atuais: por erro, falta de gosto, extravagância, grossura, ironia, perversidade, mau gosto, etc. Uma circunvizinhança que, na falta de outra denominação, designamos como kitsch. E se encontramos essa posição de proximidade, tal ocorre, friso: não há qualquer pontuação negativa nisso, porque a atividade artística em seu curso permitiu isso. Próximos[3] entre si, as qualidades enfatizam pontos de convergência com potência capaz de fazer jogar as suas diferenças. Burjato explora as proximidades e distâncias descortinadas entre esses dois termos; em movimentos que se apresentam plenos de ambiguidade. Ora embaça a presença desse outro. Ora o revela. Em alguns trabalhos a tradição se faz mais evidente. Em outros toma formas mais largadas. Mais que isso: a presença do par é investida de circunstâncias diametralmente opostas. Determinados trabalhos guardam algo derivativo do Moderno. Já outros se alinham a perfis ditos Pós. O certo é que tanto lá quanto cá a aderência a proposições já marcadas não se mostra mais sólida. Haveria aqui algum erro de cálculo?
A esta altura torno à cena da narrativa inicial. A dúvida que perpassa o filho não tem como ser vencida. Guimarães Rosa compõe a estória dotada de uma configuração híbrida. A estrutura moderna do conto comporta elementos da urdidura clássica. Uma das margens dispõe de visibilidade, enquanto a outra se conserva absolutamente oculta. Entretanto é certo que a permanência no rio é clivada por uma ordem de desejos ancorados em cada uma das margens. Desejos que vão encontrar na figura dessa personagem seu estado de proximidade extremada. Talvez ele também ame algo que se posta lá. Talvez para que ele continue amando o que aqui está, algo de lá deva estar aqui. Talvez. Assim, só lhe resta procurar uma margem comum a ambas, ainda que distante das duas.
Diversamente dos marcos da história clássica, a contemporaneidade coloca em cena todas as suas facetas; expõe a tudo, até de modo promíscuo. Ainda assim não torna as coisas mais fáceis. Decisões ainda devem ser tomadas. E são tomadas assentes sobre nossas experiências. Uma tela é um campo de decisões. E de experiências. Fernando sabe bem a espécie de território que se apresenta diante dele. Sabe o peso dessa história e de suas conquistas. Também sabe que isso pouco vale para a sua continuidade se a jurisdição não se abrir, não se mantiver atual, promover novos pertencimentos. Conta somente ao passado. Sabe também, assim presume-se, que a história da arte antes de ser uma esfera do pertencimento é a da exclusão. Ela previamente distingue e depois joga com o que ela mesma excluiu. Distingue arte de outras culturas e joga com elas: Arte da atividade industrial. Arte da cultura popular. Arte da cultura de massas. Arte da pornografia. Só o que se encontra excluído pode vir a pertencer. A condição contemporânea nos coloca na condição de observadores privilegiados. Vemos a ocorrência e o que se passa ao redor e ao redor do redor. Não dispomos mais unicamente de um ponto fixo que crê que a tudo abrange. Mais de múltiplas, incontáveis, percepções particulares. Fernando vive tudo isso. Sendo assim, só lhe cabe arriscar em águas turbulentas, justamente onde a exclusão e o pertencimento dispõem seus limites, à cata de um ponto onde este e aquele se fazem em comum e se conciliam: na verdade de um outro.
Marco Silveira Mello
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