Sergio Niculitcheff: A pintura sobre a morte da pintura
A pintura silenciosa de Sergio Niculitcheff já o faz um dos grandes artistas de sua geração. Diferentemente dos seus contemporâneos que tenderam mais e explicitamente às facetas da arte conceitual e interativa através da experimentação de materiais, Niculitcheff, quando observado na cena atual constitui um ciclorama da linguagem da pintura onde estão muitas das discussões estéticas de sua geração, as quais, teoricamente, passariam longe da pintura como ação da arte contemporânea.
Aparentemente realista, na pintura de Niculitcheff estão distorções significativas da realidade, da figura, do espaço simbólico, assim como uma forte apropriação conceitual da pintura enquanto documentação conceitual da arte, justapondo a observação dentro de um jogo dinâmico entre situações reais e irreais da matéria e da percepção. Suas pinturas são imagens que se operam entre campos de percepção e matérias contraditórias. No caso da memória ela sempre opera a presença de alguns objetos dentro de uma atmosfera que não os devolve ao ambiente original e sim assume um invólucro do tempo que evoca toda uma coleção de objetos em estado de suspensão ambiental.
Há uma expressão do formalismo que nega o formalismo, propondo o conceito não como matéria mas como memória da pintura e das lembranças impulsionadas pelo seu cotidiano particular que o conduz como chave universal de uma geração que discute as fronteiras de uma arte profundamente rupturalista e inacabada cujo objetivo central está na ação que leva a constituição do objeto e não no objeto em si. O que está de fora nesse contexto é a noção histórica da pintura como matéria do pintor. Assim ele não deixa de pintar, como deixaram na maior parte de ações e obras os artistas concessionários da morte crítica da pintura que começa a se dar a partir dos anos 70.
Estranhamente, porém, quando se olha com mais cuidado a pintura de Niculitcheff, uma pertinência ao tempo e a linguagem de uma geração que, decididamente, rompeu com a pintura, sua linguagem se reorganiza mesmo pictórica na lógica dessa ruptura alcançando as mesmas questões de deslocamento, interação, ironia, anti-matéria, experimentação de materiais e as mesmas reações de comportamento incluindo a dessacralização da pintura. Não é, portanto, a pintura de S. N. uma pintura que passa à parte das discussões estéticas do seu tempo. No caso do objeto, por exemplo, se vê claramente que, ao contrário do que ocorreu com sua geração que viveu a típica migração da pintura para o objeto, o objeto é que migra para dentro do universo da pintura de Niculitcheff, invertendo a lógica de ação de grupos de artistas que, na sua grande maioria caminhou para o objeto como meio de manifestação e que contestava a noção da pintura e a ostentação dos materiais clássicos como no caso da escultura de Romagnolo, os objetos de Ana Tavares, os tecidos de Leda Catunda e as coleções de tickets e as sensíveis razões costuradas de Leonilson que, ao mesmo tempo abriam caminhos para a instalação e assumiam a performance como linguagem inerente entre a instalação e a escultura migrada para a ocupação do espaço e as novas noções de comportamento tensionadas nesse meio, vistas também no humor da obra de Ciro Cozzolino. E neste sentido, vale dizer que a pintura de Niculitcheff também discute os campos da instalação e suas possiblidades de interação pela mescla simbólica dos objetos que estão presentes na sua cartografia de imagens. Livros pegando fogo, um cubo amarelo isolado na paisagem, a pintura que antes inventa uma escultura e a centena de objetos que parecem ser, mas não são tão realistas quanto parecem, ironizam, profundamente, a ideia do realismo na pintura. Assim como a cartilha sobre a morte da pintura.
Pouco percebido na cena ruidosa dos anos 80, 90 e quase silenciado até a primeira década do séc. XXI, Niculitcheff, apesar deste exílio involuntário, consolida-se, hoje, após um ensaio colossal da morte da pintura, pela construção de uma obra absolutamente potente do ponto de vista conceitual, silenciosa e com grandes qualidades metafísicas e imaginativas como é característico na arte da pintura de todos os tempos.
Não há o que melhor indique a relação entre conceito, integração e negação da forma, gerando um depoimento pictórico cujo alcance expõe não apenas a ideia da pintura em si como também todas as pulsações de uma geração que se coloca entre a ruptura com a pintura na arte Moderna, referente à eclosão do objeto, da instalação, da imaterialidade e até mesmo da performance se olharmos a imensa ironia que se fixa nas atmosferas da obra de Niculitcheff e da sua pintura como não pintura. Ironia esta que o expõe além do problema da cor como algo central na pintura brasileira, até o aparecimento do grupo "Casa 7" e suas reverberações imateriais, como antes percebidas na pintura de Iberê Camargo também profundamente ligada ao objeto e o comportamento citando aqui carretéis e ciclistas, entre outros emblemas da pintura de Iberê. Se para Volpi o problema da pintura estava na cor, para Iberê o problema da pintura se resolve à partir do objeto. O mesmo objeto que, na geração de Niculitcheff ganha autonomia e ocupa o espaço, no caso dele, dentro de sua própria pintura. Ou seja, Sergio Niculitcheff não apenas é um artista que conseguiu retratar o drama criativo e recorrente de toda a matéria coletiva de abandono e retorno da pintura, seja no fazer, seja na sua decorrência crítica ou na sua negação como linguagem arquetípica da arte, quanto na matéria que ele domina sem necessitar aparentar nenhuma vanguarda aparente do século XX, apologizando, assim, quase sem querer, no seu profundo silêncio, a ideia originária da pintura como linguagem basilar da arte e da pintura depois da pintura expressando-a também como linguagem pós-moderna, local, para chegar junto e em paralelo com a nova constituição das artes visuais, como vemos nesta singela mostra de objetos da ação de um pintor que ainda pouco visto na sua importância é hoje o maior colecionador de si mesmo e que diferentemente de uma nova geração que tem Lucien Freud como crença, dominada pela ainda pela pintura de fora, se coloca desde o início de sua atividade como um buscador de realidades internas com a rara perspicácia de ser um atento observador de tudo aquilo que está ao seu redor e que fundamentalmente, realiza, com toda uma geração de pintores o que é mais fundamental na sua subsequente missão de profunda coerência, desde a "Pintura como Meio", que é ter feito a pintura atravessar seus tempos de crise.
Saulo di Tarso setembro de 2013
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